27.10.08

Violência Doméstica - novo quadro legal e processual penal

A sede de justiça que incita os homens a realizar o ideal da cidade dos seus sonhos, a revoltar-se contra a injustiça de certos actos, de certas situações, fornece uma motivação suficiente para os mais sublimes sacrifícios bem como para as piores malfeitorias. O mesmo impulso entusiasta que os lança em busca de um mundo melhor pode varrer sem piedade tudo o que se lhe põe como obstáculo: «pereat mundus, fiat justitia».”
Chaïm Perelman ( )


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NOVO QUADRO PENAL E PROCESSUAL PENAL
( )


1. CONTEXTO E FINALIDADES DA REVISÃO PENAL DE 2007 ( )

A sociedade portuguesa, pela denúncia e pela participação, tem-se encarregue de pintar diariamente, com novas cores, as cifras que eram negras. Desde o ano de 2000 o registo de crimes associados à violência doméstica tem aumentado mais de 10% por ano. No ano de 2006 aumentou 30%, num total de mais de 17 mil casos, segundo o último relatório de segurança interna conhecido. Assim, tivemos mais 3287 crimes registados do que no ano anterior, o que corresponde a mais de nove queixas por dia ( ).
A elevação estatística pode ser representativa do aumento desta realidade, social e criminal, associado ao recrudescimento de determinados factores psico-sociais favoráveis. Mas, também se sabe corresponderem ao real abaixamento das insuportáveis cifras negras, devido a políticas públicas e preventivas mais assertivas, uma acção policial mais interveniente ou, simplesmente, a uma sociedade menos tolerante e mais denunciante.
Contudo, de acordo com informação da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima referente ao mesmo ano, estes números estarão ainda longe da realidade, uma vez que, nesse ano, apenas 47% dos pedidos de apoio em situações de violência doméstica que lhe foram dirigidos, terão sido denunciados às instituições judiciárias.
Nesta matéria, a premência de um contínuo aperfeiçoamento, normativo e institucional, mais do que uma decorrência lógica de números e estatísticas na prossecução de um Estado de Direito assente na igual dignidade de cada pessoa, assumiu-se como parte integrante do discurso público dominante.
A lei penal, substantiva e adjectiva, tem constituído o palco privilegiado da vontade política em inverter uma realidade e um status quo individual insustentáveis, mas também ponto de encontro de hesitações e compromissos, na fronteira com a vida privada e em nome de uma certa liberdade de autodeterminação mais presumida do que real.
Poucas palavras bastariam, assim, para enquadrar esta nova alteração à lei penal, numa direcção que na generalidade das democracias é já de sentido único, para que todas as pessoas, sem excepção, possam aspirar à supremacia da força da lei sobre a lei da força e exorcizar heranças sociais e culturais de violência enraizada.
De qualquer modo, há que aquilatar quais as medidas e caminhos prosseguidos para o procurar alcançar, nesta oportunidade. Na ausência de uma oportuna divulgação das actas dos trabalhos preparatórios, encontramos na exposição de motivos do anteprojecto da Unidade de Missão para a Reforma Penal, mantido na Proposta de Lei n.º 98/X, que originou a 23ª alteração ao Código Penal ( ), indícios bastantes.
Sustenta-se que a revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado. Entre as “principais orientações [da revisão], destacam-se:” (…) o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus-tratos ou discriminação”.
São salientadas as seguintes medidas:
“- Os maus-tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido.
- Na descrição típica da violência doméstica e dos maus-tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa.
- No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges.
- Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado contra menores ou na presença de menores ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente.
- À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela.”
Na exposição de motivos do anteprojecto da Unidade de Missão para a Reforma Penal, mantido na Proposta de Lei n.º 109/X, que originou a 15ª alteração ao Código de Processo Penal ( ), afirma-se que “tendo presente que o Processo Penal é Direito Constitucional aplicado, as alterações pretendem conciliar a protecção da vítima – reforçada, designadamente, em sede de segredo de justiça, escutas telefónicas, acesso aos autos, informação sobre fuga e libertação de reclusos, declarações para memória futura e suspensão provisória do processo – e o desígnio de eficácia com as garantias de defesa, procurando dar cumprimento ao n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que associa a presunção de inocência à celeridade do julgamento”. Veremos se, ao longo das diversas alterações no âmbito da violência doméstica, o almejado equilíbrio foi ou não alcançado.

2. ENQUADRAMENTO GERAL DA REVISÃO PENAL

2.1. Noção de violência doméstica e a sua dimensão sócio-cultural

Não se tem a pretensão de fazer, nesta sede, o retrato, mesmo que a preto e branco, duma realidade tão complexa nas suas causas como nas suas dimensões.
Embora a violência seja um fenómeno generalizado a quase todas as sociedades, a sua definição não é universal. Cada sociedade tem a sua própria violência, correspondendo a critérios que variam de cultura para cultura ( ). O conceito de violência doméstica não é unívoco entre os profissionais que se dedicam ao seu estudo, mas em todas as flutuações conceptuais são identificadas três formas básicas e mais frequentes – a violência sobre as crianças, os idosos e as mulheres ( ).
Traduzindo um problema de afirmação de domínio do mais forte, para ele concorrem diversos factores de risco, como a exclusão social, o desemprego, o alcoolismo, a toxicodependência, o vício de jogo, perturbações patológicas da personalidade, entre outras ( ); e para além destes, factores sociais e culturais, nos quais sobreleva uma desigualdade culturalmente enraizada em códigos de conduta social, com papeis escalonados e hierarquizados em função do género, masculino ou feminino, de cada um.
Relembremos a lição de Pierre Bourdieu, relativa à violência de género: "A força da ordem masculina pode ser aferida pelo facto de que ela não precisa de justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar, visando sua legitimação. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica, tendendo a ratificar a dominação masculina na qual se funda: é a divisão social do trabalho, distribuição muito restrita das actividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu lugar, seu momento, seus instrumentos [...] Os esquemas que o dominado mobiliza para se perceber e avaliar-se ou para perceber e avaliar o dominador são o resultado da incorporação de classificações, assim naturalizadas.” ( ).
Em suma e na afirmação do III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010), que se sufraga plenamente, “a violência doméstica não é um fenómeno novo nem um problema exclusivamente nacional”, mas “a visibilidade crescente que tem vindo a adquirir associada à redefinição dos papéis de género, e à construção de uma nova consciência social e de cidadania, bem como à afirmação dos direitos humanos, levaram os poderes públicos a definir políticas de combate a um fenómeno que durante muitos anos permaneceu silenciado”.

2.2. Violência doméstica como problema social, questão de direitos humanos e objecto de políticas públicas

No contexto político internacional várias medidas, recomendações e normas têm vindo a ser definidas na identificação e combate à violência doméstica, em especial na sua vertente de violência de género e violência contra as mulheres.
Desde logo, as Nações Unidas têm procurado combater a violência contra as mulheres, considerando a violência em razão do sexo, nomeadamente a violência doméstica, como um dos principais obstáculos ao pleno gozo dos direitos humanos das mulheres e das suas liberdades fundamentais.
A Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, adoptada em Dezembro de 1993, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, declara que “A violência contra as mulheres é uma manifestação da desigualdade histórica das relações de poder entre sexos, que conduziram à dominação sobre as mulheres e à discriminação contra as mulheres por parte dos homens, e à obstaculização do seu pleno progresso […]”. Reconhecendo na IV Conferência Mundial, de 1995, que constitui um obstáculo para alcançar os objectivos da igualdade, desenvolvimento e paz.
No âmbito da União Europeia, a erradicação de todas as formas de violência em razão do sexo constitui uma das seis áreas prioritárias de intervenção constantes do Roteiro para Igualdade entre Homens e Mulheres para o período 2006-2010.
Apela-se à urgência dos Estados Membros em eliminar todas as formas de violência contra as mulheres, uma vez que esta constitui uma violação dos direitos fundamentais.
O Comité Económico e Social Europeu da União Europeia, adoptou, na sessão de Março de 2006, um apelo para uma estratégia pan-europeia sobre violência doméstica contra as mulheres.
O Conselho da Europa define como objectivos centrais o reconhecimento e o respeito pela dignidade e integridade de mulheres e homens, tal como o combate à violência contra as mulheres. Em 2002, o Comité de Ministros do Conselho da Europa adoptou a Recomendação Rec (2002) 5 sobre a Protecção das Mulheres contra a Violência, em que afirma, lapidarmente:
- A violência para com as mulheres decorre das relações de força desiguais entre homens e mulheres e conduz a uma discriminação grave contra o sexo feminino tanto na sociedade como na família;
- A violência contra as mulheres viola os direitos da pessoa humana e as suas liberdades fundamentais e impede-as de os exercer parcial ou totalmente;
- A violência exercida contra as mulheres atenta contra a sua integridade física, psíquica e/ou sexual;
- As mulheres são muitas vezes submetidas a múltiplas discriminações fundadas no seu sexo, bem como na sua origem, incluindo enquanto vítimas de práticas tradicionais e decorrentes dos costumes, incompatíveis com os direitos da pessoa humana e as suas liberdades fundamentais;
- A violência contra as mulheres vai contra a instauração da igualdade e da paz e constitui um obstáculo considerável para a segurança dos cidadãos e da democracia na Europa;
- A extensão da violência contra as mulheres na família, qualquer que seja a sua forma, e a todos os níveis da sociedade;
- É urgente combater este fenómeno, que afecta as sociedades europeias no seu conjunto e que diz respeito a todos os seus membros.

2.3. Discriminação positiva de certas espécies de violência doméstica

Na sequência deste quadro político internacional, favorável a uma discriminação positiva no combate à violência doméstica contra as mulheres, o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010), reconhece que “apesar da violência doméstica atingir igualmente as crianças, os idosos, pessoas dependentes e pessoas com deficiência, a realidade comprova que as mulheres continuam a ser o grupo onde se verifica a maior parte das situações de violência doméstica, que neste contexto se assume como uma questão de violência de género”. Sem que isso signifique que todas as vítimas de violência doméstica sejam do sexo feminino e que todos os agressores sejam homens. Mas “a pertinência de uma representação não neutral do género nesta criminalidade reside no facto do sexo da vítima e do agressor influenciarem o comportamento de ambos”
Ainda de acordo com o mesmo III Plano: “Dados resultantes de um estudo de 2006 elaborado entre os diversos Estados Membros do Conselho da Europa, indicam que cerca de 12% a 15% das mulheres europeias com mais de 16 anos de idade vivem situações de violência doméstica numa relação conjugal, e muitas delas continuam a sofrer de violência física e sexual mesmo após a ruptura. Muitas morrem mesmo.”
Quanto à realidade portuguesa, das vítimas nos mais de 17 mil casos de violência doméstica participados no ano de 2006, cerca de 87% são mulheres.
Incontestadas são, actualmente, as necessidades de protecção acrescida igualmente devidas a crianças e idosos, enquanto categoria objectiva de vítimas particularmente indefesas.
A exigência de operações normativas de discriminação positiva deve ser assumida sem complexos, numa resposta assimétrica preferencialmente dirigida também para a área penal, como forma de realizar plenamente o princípio constitucional da igualdade, na nossa matriz humanista de garantia máxima de bens jurídicos fundamentais.
Mesmo relativamente à mais contestada diferenciação na repressão ( ) da violência sobre as mulheres – não enquadráveis no quadro mais sedimentado das vítimas particularmente indefesas – o próprio ordenamento jurídico português já tem marcas pretéritas de discriminação positiva de género, desde logo com a Lei nº 61/91 de 13 de Agosto, que garante protecção adequada às mulheres vítimas de violência doméstica ( ). O mesmo sucede com a Lei n.º 107/99 de 3 de Agosto, que estabelece o quadro-geral da rede pública de casas de apoio para vítimas de violência. Com a resolução da Assembleia da República nº7/2000, pronunciando-se no sentido de assegurar um serviço de atendimento telefónico permanente às vítimas de violência doméstica e de assegurar a regulamentação daquela lei para assegurar a efectiva criação da rede pública de casas de apoio a mulheres vítimas de crimes. Ou o Decreto-Lei nº 323/200 de 19 de Dezembro que a veio, efectivamente, regulamentar ( ).

2.4. Abordagem holística da violência doméstica

No estudo do Conselho da Europa sobre as medidas tomadas, até ao momento, pelos diversos Estados-membros para o combate à violência doméstica contra as mulheres ( ), são privilegiadas as abordagens holísticas e, como tal, politicamente englobantes, multidisciplinares e socialmente transversais.
É indicado como paradigmático o modelo espanhol, sem ser o único ( ). O seu substracto fundacional é, nesta perspectiva holística, a implementação de um vasto conjunto de políticas públicas (justiça, apoio social, trabalho, saúde, educação e artes), que correspondam a uma acção normativa dirigida a combater as manifestações de discriminação em razão do género, na promoção da igualdade real entre homens e mulheres. Assim concebida, trata-se, aliás, de uma imposição constitucional, na vertente da discriminação positiva de situações reconhecidamente mais desfavorecidas, na concretização material do princípio da igualdade.
Mesmo focalizando apenas na intervenção para a área penal, a sobredita Recomendação Rec (2002) 5, do Comité de Ministros do Conselho da Europa, preconiza que os Estados membros devem:
- Garantir que a legislação penal preveja que qualquer acto de violência contra uma pessoa, em particular violência física ou sexual, constitui um atentado à liberdade e à integridade física, psicológica e/ou sexual dessa pessoa e não apenas um atentado à moral, à honra ou à decência;
- Prever na legislação nacional as medidas e as sanções apropriadas que permitam actuar rápida e eficazmente contra os autores de violências, bem como reparar os danos causados às mulheres vítimas de violências.
Recomendações que não se duvida terem sido cumpridas pelo ordenamento jurídico-penal português. Contudo, na acepção abrangente e integrada do combate à violência doméstica, nas suas várias dimensões que preconizamos, persistem lacunas importantes ao nível da aplicação da Recomendação Rec (2002) 5, mesmo relativas à intervenção para a área penal, nomeadamente na vertente dos procedimentos judiciários ( ), quanto a programas de intervenção com agressores ( ), à violência no seio familiar em especial ( ), ou ainda em matérias transversais ou exteriores à área penal ( ).
Destas, destaca-se, pela negativa, o atraso na implementação das recomendações relativas à intervenção com agressores, no confronto como os modelos e projectos já implementados com sucesso, testados e estudados, em inúmeros países e continentes, nas últimas duas décadas ( ). É inquestionável o seu relevo no controlo da reincidência, essencial para a protecção da vítima presente e todas as possíveis vítimas futuras. Muitos agressores, como muitas vítimas, não problematizam criticamente os seus actos, que consideram socialmente adequados, sendo a educação para a cidadania e para os direitos fundamentais da igualdade e igual dignidade humana, a opção fundamental no combate destas “formas de violência socializada”. O que implica uma “intervenção social alargada”, adequada a “combater crenças e mitos fortemente enraizados”, promovendo a mudança no sentido da não-violência, co-construir novas formas de relação, novas formas de olhar/ver os outros e a si próprios ( ).
É assim que, no plano internacional, encontramos inúmeras concretizações desta perspectiva de acção social e política, tratando de forma integrada a violência doméstica e a violência de género, designadamente, mediante a criação de políticas globais específicas, de instâncias especializadas de direcção da investigação, entidades especializadas de direcção da investigação, tribunais ou juízos específicos, ou órgãos judiciais especialmente dirigidos à monitorização da violência doméstica ( ).

3. CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – BEM JURÍDICO PROTEGIDO

Pretende-se caracterizar o bem jurídico que é objecto de protecção pela norma incriminadora, prevista no artigo 152º nº1, do Código Penal, que autonomiza face ao tradicional crime de maus-tratos um novo crime de violência doméstica, de modo a delimitar o âmbito de previsão do respectivo tipo legal de crime.
Constata-se que se manteve inalterada a sua inserção sistemática - Cap. III (crimes contra a integridade física) do Título I (crimes contra a pessoa), da parte especial do Código Penal.
Contudo, logo ao nível da exposição de motivos da proposta de lei, a distinção operada entre os crimes de violência doméstica e maus-tratos, é atribuída à distinção entre os respectivos bens jurídicos.
Aparentemente, a nova epígrafe, violência doméstica, pareceria reconduzir o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, à tutela da família ou da respectiva sociedade conjugal densificando o art. 67 nº1 da Constituição da República. Mas, não há dúvida que o conceito de violência doméstica, sendo polissémico, assume hoje um significado maior que violência na família, seja violência no espaço doméstico ou violência na vida doméstica.
Por isso, o I Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência, já definia o próprio conceito de maus-tratos como “qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos ou psíquicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando, seja cônjuge ou companheiro, ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como ascendentes ou descendentes”.
Enquadrar a violência doméstica, na realidade sócio-cultural actual, implica ainda considerar factos que podem integrar a prática de tipos-legais de crime – em concurso efectivo ou aparente – como a ofensa à integridade física, ameaça, sequestro, coacção, injúria, difamação, devassa da vida privada, violação de correspondência, gravações e fotografias ilícitas, dano, coacção sexual, violação, abuso sexual de menores, homicídio na forma tentada ou consumada.
Importa considerar, ainda, a nova redacção do tipo-legal, previsto no nº1 desse artigo, que integra nas suas alíneas uma multiplicidade de possíveis sujeitos passivos do crime, filiados numa relação, presente ou pretérita, de conjugalidade ou união de facto, mesmo sem coabitação, ou numa relação de mera coabitação latu sensu, com pessoa particularmente indefesa.
Seguindo o entendimento maioritário na jurisprudência e de acordo com a noção proposta por Taipa de Carvalho ( ), a tutela funda-se no princípio da igual dignidade da pessoa humana, proclamado no artigo 1º da Constituição da República.
Trata-se de eliminar desigualdades que, atingindo níveis insuportáveis, têm vindo a ser corrigidas também pela intervenção do direito penal ( ).
A que acresce a garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, consagrada no artigo 25º da Constituição da República, que constitui o “núcleo de protecção absoluta do direito fundamental à liberdade pessoal” ( ).
Não se vê, assim, razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral.
A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.
A tutela do bem jurídico é projectada numa relação de afectividade ou coabitação ( ), que pode materializar-se em casamento ou relação análoga, com ou sem coabitação, ou em mera coabitação quando a vítima seja pessoa particularmente indefesa. Sempre pressupondo um nexo relacional, presente ou pretérito, de vida em comum, numa acepção ampla do termo, sendo em certos casos para tutela do seu património afectivo comum.

4. ANÁLISE DA NORMA INCRIMINADORA

4.1. Relativamente à factualidade típica do crime de violência doméstica, à semelhança da anterior redacção do crime de maus-tratos, continua a exigir-se que sejam infligidos a outra pessoa maus-tratos físicos ou psíquicos.
Trata-se de um crime de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos ou psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões.

4.2. Relativamente ao anterior crime de maus-tratos, foi adicionada uma referência à comissão alternativa de modo reiterado ou não, quando do anteprojecto e da proposta de lei constava, ao invés, a alternativa de modo intenso ou reiterado. A alteração original visava, de acordo com a exposição de motivos do anteprojecto, pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial, sobre a exigência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação obrigatória.
A clarificação não se afasta, como veremos, da corrente jurisprudencial mais recente dos tribunais superiores. Segundo esta, por regra “não basta uma acção isolada do agente, sem se exigir uma situação de habitualidade, mas em casos de especial violência uma única agressão bastará para integrar o crime” ( ).
No que concerne à reiteração, colhemos na abundante doutrina e jurisprudência espanholas, facilmente transponíveis para o nosso ordenamento jurídico-penal neste aspecto, elementos para estabelecer um critério seguro de interpretação. Este há-de assentar num conceito fáctico e criminológico de reiteração por parte do sujeito activo, que dê lugar a um estado de agressão permanente, sem que as agressões tenham que ser constantes ( ), embora com uma proximidade temporal relativa entre si ( ).
É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante.
Questão diversa é a exigência probatória da especificação das datas dos factos, quando muitas vezes a situação temporal exacta de todas as agressões é difícil e desnecessária, bastando a fixação de balizas temporais que permitam assegurar ao arguido o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo.
Na ausência de divulgação das actas referentes aos trabalhos na Primeira Comissão Parlamentar, de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a dúvida quanto à remoção do inciso intenso, permanece legítima. De qualquer modo, permitiu ultrapassar as críticas que, desde a divulgação pública do anteprojecto, foram surgindo quanto à introdução dessa alternativa típica, entre os maus-tratos intensos ou maus-tratos reiterados, por potenciar a fragmentariedade da incriminação ( ). Ao invés do pretendido intuito protector da vítima, seria então atípica uma conduta maltratante, desde que os maus-tratos não fossem reiterados nem intensos. Rui Pereira, na qualidade de Presidente da Unidade de Missão para a Reforma Penal, teve a oportunidade de esclarecer, em diversas conferências sobre a revisão, que não se pretendia transformar qualquer ofensa ou ameaça – crimes de natureza semi-pública – em crimes de maus-tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva. Mantinha-se a situação em vigor, apenas com a clarificação que a reiteração não é exigida, desde que a conduta maltratante seja especialmente intensa.
Eventualmente, a confusão terá surgido do modo alternativo de execução – reiterado ou intenso – ter sido reportado aos maus-tratos, quando o deveria ter sido às concretas ofensas que os integram. Pois, em congruência valorativa, todos os maus-tratos, no âmbito de uma relação afectiva, deverão ser previstos e punidos neste crime. A questão é que nem todas as ofensas constituem maus-tratos, neste sentido penalmente típico. Designadamente, não serão maus-tratos quando careçam de intensidade para colocar em crise o bem jurídico protegido ( ).
Em suma, pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
A intensidade da ofensa exigida para a verificação típica, respeitando um parâmetro objectivo, dependerá das circunstâncias do caso concreto. Embora facilmente se conceba que nas situações previstas na alínea d) do nº 1, do artigo sub judice, por estarem em causa vítimas especialmente vulneráveis, a intensidade objectivamente exigida será, neste caso, menor.

4.3. Sendo um crime de execução não vinculada, especifica-se agora que os maus-tratos poderão incluir castigos corporais. Esta alteração não constava do anteprojecto, tendo sido introduzida na proposta de lei.
Também aqui desconhece-se o elemento histórico. Estará em causa, certamente, o poder funcional de correcção dos pais e dos educadores, pois longe vão os tempos do moderado poder de correcção doméstica do marido sobre a mulher.
Na doutrina e jurisprudência discute-se a admissibilidade e os limites desse ius corrigendi, ou seja, castigos corporais com justificação educativa ( ), seja pela teoria das bagatelas penais, da tolerância social, da adequação social, dos elementos negativos do tipo, como causa de exclusão da ilicitude, nominada ou inominada ( ).
Encontramos bons frutos dessa discussão no direito comparado. Em Espanha e na Itália ( ) permite-se justificar os castigos dos encarregados de educação dos menores que prosseguirem um fim educativo indispensável ao cabal desenvolvimento físico e psicológico destes, desde que sejam necessários, razoáveis e proporcionais – adequados à idade do menor, constituição física, capacidade de discernimento, etc.
Na Alemanha encontrávamos uma posição semelhante até que, no dia 7 de Novembro de 2000, foi alterado o parágrafo 1631 - 2º, do BGB – Bürgerliches Gesetbuch, passando a prever: “As crianças têm direito a uma educação livre de violência. Castigos físicos, lesões mentais e outras medidas degradantes são inadmissíveis” ( ).
Terá o legislador reformista português perfilhado uma posição extrema de abolicionismo de qualquer forma de castigo? Ou terá, apenas, querido abranger os castigos desproporcionados, intensos ou reiterados?
Quanto a estes últimos, não se suscitavam quaisquer dúvidas que, enquanto verdadeiros maus-tratos, na vertente de degradação humana implícita na conduta maltratante, integravam já a prática da anterior incriminação. Ainda assim, sempre poderíamos encontrar uma evidente utilidade na clarificação normativa, ao nível da prevenção geral de pendor mais pedagógico, num tempo que, consabidamente, ainda traz consigo a marca da dor e do sofrimento de muitos dos nossos filhos.
Com efeito, crê-se que terá sido esta, tão-só, a ratio da alteração, pois que, sendo o ius corrigendi socialmente aceite como enformador do poder paternal, tal como previsto civilmente e estando mesmo instalado na concepção ético-social dominante, a sua censura penal passaria por uma outra enunciação verbal, que o próprio sentido máximo das palavras, maus-tratos, não consente.

4.4. Especifica-se também que os maus-tratos poderão incluir privações da liberdade e ofensas sexuais. Esta alteração constava já do anteprojecto.
É uma alteração que visa clarificar ou adicionar duas modalidades de acção possível da conduta maltratante penalmente típica. Ambas poderiam ter-se já por abrangidas na anterior redacção.
As ofensas sexuais podem, eventualmente, integrar a prática de crimes contra a liberdade sexual, mormente os previstos no nº 2 do art. 163 e no nº2 do art. 164º, cuja pena é inferior a 5 anos, pelo que prevalecerá o crime de violência doméstica. Neste caso, levanta-se uma questão de incongruência com a natureza procedimental semi-pública daqueles crimes.
Supondo que uma vítima não quer procedimento, veria entrar pela janela aquilo a que fechara a porta ao não apresentar queixa. Embora esta questão seja, porventura, meramente académica em termos de resultados, pois em caso de ausência de vontade no procedimento dificilmente se terá conhecimento desses actos e muito menos se fará prova dos mesmos.
Na situação inversa, a previsão poderá ser útil. Ou seja, ultrapassado o prazo para apresentação de queixa por crimes contra a liberdade sexual, esclarece-se que o procedimento poderá ser como que repristinado, por via da integração daqueles na factualidade do crime de violência doméstica, embora sempre limitado à respectiva moldura penal.

4.5. O Crime de violência doméstica é um crime específico que exige a verificação de determinadas qualidades pessoais do agente. Também o âmbito dos sujeitos do crime foi alterado pela revisão.
4.5.1. O âmbito dos sujeitos passivos do crime é, desde logo, alterado na alínea b), do nº1, passando a prever-se a pessoa com quem mantenha relação análoga em vez do convivente em condições análogas às dos cônjuges.
Alarga-se o âmbito da incriminação, pois uma relação análoga encontra-se mais distante da conjugalidade do que uma relação cujas condições sejam integralmente análogas e implique uma vida em comum, ou seja, com ele conviver. A ratio extensiva, é confirmada pela ressalva final, ainda que sem coabitação.
Mesmo na redacção anterior, caracterizando o que se deveria entender por convivência análoga às dos cônjuges, já Catarina Sá Gomes ( ), propendia para um tratamento diferenciado face à Lei da União de Facto. Verificava-se, então, a convivência análoga às dos cônjuges, para efeitos de tutela penal no crime de maus-tratos, desde que o relacionamento fosse estável, com comunhão habitual de cama e de habitação, ficando excluídas as relações momentâneas, fortuitas, ainda que vividas intensamente.
Após a revisão, entende-se que esta doutrina se mantém válida. Embora recusando o recurso à ideia de comunhão habitual de cama e de habitação, impõe-se ainda afirmar a estabilidade do relacionamento, em fluxo simétrico, com a relação conjugal, que excluirá do âmbito de previsão da norma as ligações de natureza afectiva, ou mesmo sexual, meramente fortuitas ou ocasionais.
A estabilidade relacional de afectos e sentimentos e o projecto de vida em comum, que caracterizam grosso modo a conjugalidade, hão-de revelar-se, mesmo que em menor grau, no laço afectivo e emocional mantido entre o agressor e a vítima. Deverão ser suficientemente indiciados em inquérito, indicados na acusação e provados em julgamento, os factos concretos que foram exteriorizando esse vínculo ao longo da relação ( ), perante o outro e perante terceiros, na medida estritamente necessária à sua demonstração probatória ( ).
Não obstante as críticas que se poderão colocar à técnica de sistemática jurídica da inovação, considerada a coabitação como elemento caracterizador da relação conjugal no direito civil, verificam-se uma plena identidade de razões político-criminais e uma analogia substancial do desvalor ético-jurídico com as situações de violência familiar proprio sensu – abuso de situações de poder nas relações afectivas com degradação da integridade pessoal da vítima – que são fundamento bastante para uma neoincriminação parcialmente assimétrica com o regime civil.
4.5.2. Nos vínculos de quase-conjugalidade inclui-se agora expressamente a pessoa do mesmo sexo, o que está em consonância com a nova redacção do nº3 do artigo 13º da Constituição da República, que veda a discriminação em função da orientação sexual.
Seja por clarificação, para quem admitia já uma interpretação conforme àquele preceito constitucional, ou inovação, para quem encontrava no sentido máximo das anteriores palavras “condições análogas às dos cônjuges” um limite à inclusão dos relacionamentos homossexuais insusceptíveis dessa relação ( ), a referência denota uma correcta adequação material à pluralidade e diversidade das relações familiares e afectivas contemporâneas, onde de igual modo germina a violência e se realiza o desvalor ético subjacente.
4.5.3. O alargamento aos casos do ex-cônjuge ou com quem tenha mantido relação análoga, trata-se de uma inovação ( ) positiva na tutela penal das vítimas de violência. Entende-se que está igualmente verificada uma identidade de razões político-criminais com a incriminação que visa ampliar – abuso de situações de poder nas relações afectivas findas com degradação da integridade pessoal da vítima.
A neocriminalização visa, aqui, prevenir situações carecidas de tutela muito preocupantes, pela sua frequência e pelo potencial dramático de gravidade que encerram. São os casos dos denominados “ex” que, não aceitando o fim do relacionamento por vontade unilateral do seu parceiro, muitas vezes conduzem ao homicídio deste e, por vezes, ao próprio suicídio do agente do crime.
Nestes casos, poderão ser essenciais os procedimentos cautelares e de investigação, disponibilizados processualmente para o crime de violência doméstica, enquanto segmento de “criminalidade violenta” ( ).
Estas alterações estão, aliás, em consonância com as alterações dos exemplos-padrão previstos na alínea b), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal revisto, indicativos da especial censurabilidade e perversidade do homicídio ( ). Aplicável, igualmente, como circunstância qualificativa do crime de ofensa à integridade física, ex vi artigo 145º nº2 do Código Penal revisto, naquelas situações que não configurem crime de violência doméstica.

4.5.4. A inclusão no âmbito dos sujeitos passivos do crime da pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite, é igualmente de aplaudir, pelas razões relativas à carência acrescida de tutela ( ), aqui aplicáveis por maioria de razão.
Pode questionar-se que o único nexo exigido seja o de coabitação. Contudo, a acepção ampla de violência doméstica que perfilhamos, ainda compreende, no máximo sentido das suas palavras, esta realidade sociológica substancialmente idêntica à violência doméstica stricto sensu. Crê-se que a existência de um vínculo afectivo ou mesmo familiar integrará, a maioria das situações da vida aqui subsumíveis, mas a construção típica não exige a prova dessa relação.
Resulta evidente que este conceito de coabitação é incompatível com o conceito civilístico de coabitação dos cônjuges, tal como previsto no Código Civil, pois que a totalidade de elementos que a compõem, designadamente no que se refere ao relacionamento sexual, seria incongruente com a definição abrangente de sujeitos passivos, a que obedece o catálogo da alínea d) do noº1, desse artigo, enquanto pessoa particularmente indefesa.
A boa interpretação há-de partir duma concepção naturalística de coabitação que, não dispensando um vínculo relacional mínimo na partilha de um espaço de habitação comum ainda que dividido, não exige a verificação de uma relação familiar ou de afectividade ( ).

4.6. Mantém-se a regra da subsidiariedade para a incriminação, agora expressa em termos absolutos e genéricos – se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal, o que se entende não prosseguir os fins da autonomização da incriminação.
Na exposição de motivos assume-se pretender o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus-tratos ou discriminação, a par de um alargamento do âmbito subjectivo do crime. Identificámos as recomendações internacionais que vinculam o Estado português na atribuição da melhor tutela. Será a manutenção da natureza subsidiária da incriminação a melhor forma de a alcançar?
Certamente que não, pois é o notório o enfraquecimento da protecção nas situações de subsidiariedade. Sempre que a lei penal tenha protegido outros bens jurídicos, por imperativo ético e axiológico, de modo mais enérgico pela cominação da pena mais grave, esta incriminação perde a sua autonomia. Trata-se de um paradoxo, duplamente afirmado na perda da força simbólica preventiva proclamada para a nova incriminação e na perda do arsenal de penas acessórias, especialmente vocacionadas para fazer face a esta criminalidade ( ).

4.7. São introduzidas agravantes no nº2, do mesmo artigo 152º, consolidando, relativamente à violência exercida sobre ou perante menores, bem como aos factos cometidos no domicílio da vítima, próprio ou comum ao agressor, a necessidade de uma tutela acrescida, por imperativo ético e em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional, na protecção da infância, da inviolabilidade do domicílio e da vida privada, num contexto em que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas ( ).
Estes casos reclamam, justamente, ao nível da investigação, uma intervenção pró-activa, buscando a prova no local, de acordo com o caso concreto, junto de vizinhos, estabelecimentos próximos ou mesmo mediante vigilâncias policiais, sendo necessário um total empenho dos órgãos de polícia criminal e dos magistrados do Ministério Público (MP) em superar a barreira cultural do silêncio ( ).

4.8. Outro conjunto de inovações são as penas acessórias introduzidas no nº4 e nº5 desse artigo: Proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, a par da já existente medida de proibição de contacto com a vítima. A proibição de contacto com a vítima passa a incluir, expressamente, o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o respectivo cumprimento passa a poder ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Dizemos que passa a poder ser fiscalizado, porque ainda não foram implementados os meios técnicos para que o possa efectivamente ser. Esta é a única crítica que se pode fazer a uma solução que peca por tardar, nesta sede mas também para o controlo da medida de coacção de afastamento imposta judicialmente ao agressor ( ).

4.9. Finalmente, prevê-se que o agressor que for condenado por factos graves qualificados como crime de violência doméstica, pode ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela, por um período de 1 a 10 anos, desde que os factos sejam conexos com essa sua função. Trata-se de uma tímida aproximação entre a jurisdição penal e a jurisdição de família e menores, sendo de aplaudir no princípio e na solução alcançada.

5. POLÍTICA CRIMINAL E PROTECÇÃO DE VÍTIMAS

5.1. A recente Lei n.º 51/2007 de 31 de Agosto – Lei de Política Criminal – define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprova a Lei Quadro da Política Criminal ( ).
O crime de violência doméstica é estabelecido na alínea a), do artigo 3º, dessa lei, como crime de prevenção prioritária, tendo em conta a dignidade do bem jurídico tutelado e a necessidade de proteger as potenciais vítimas.
Nos termos da alínea a), do artigo 4º da mesma lei, a violência doméstica é considerada um crime de investigação prioritária, tendo em conta a sua gravidade e a necessidade de evitar a sua prática futura ou o seu prosseguimento.

5.2. Na mesma lei, prevê-se ainda que na sua prevenção e investigação promove-se, em particular, a protecção de vítimas especialmente indefesas, incluindo crianças, mulheres grávidas, pessoas idosas, doentes, deficientes e imigrantes.
Tal como a globalidade do ordenamento processual penal, este preceito legal – cuja colocação sistemática num diploma de vigência temporária nos causa alguma perplexidade – deve ser aplicado numa interpretação conforme aos artigos 2º, 3º e 8º da Decisão Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de Março de 2001, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, na delimitação do respectivo âmbito da protecção ( ) ( ).

5.3. É possível o recurso aos mecanismos previstos na Lei de Protecção de Testemunhas para as testemunhas especialmente vulneráveis. ( ). O que será, designadamente, o caso das crianças e em especial daquelas que prestem declarações contra pessoa da própria família, como poderá suceder com os filhos do agressor. São estas o acompanhamento por técnico do serviço social, apoio psicológico, inquirição com a maior brevidade possível, declarações para memória futura, ausência do arguido em audiência, inquirição apenas através do juiz que presida, eventual utilização de meios de ocultação ou teleconferência.
Ainda assim, considerada a moldura penal aplicável, não seria, incompreensivelmente, aplicável o artigo 20º desta lei – medidas pontuais de segurança – que exige a indiciação de crime que deva ser julgado pelo tribunal colectivo. Entendemos, contudo, que as medidas de protecção aí previstas, como o transporte em viatura policial, protecção pessoal própria e de familiares, compartimento separado dos restantes intervenientes nas instalações policiais ou judiciárias, entre outras que se revelem necessárias e adequadas, poderão ser aplicadas, designadamente ex vi artigo 5º da Lei de Política Criminal, numa interpretação conforme àquela Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho.

5.4. Relativamente à actuação do MP, enquanto magistratura de iniciativa e de serviço, convém salientar os pontos 32 e 33 da Recomendação REC (2000) 19, do Comité de Ministros do Conselho de Europa, segundo os quais:
“- O MP deve tomar devidamente em atenção os interesses das testemunhas, em especial, tomando ou promovendo medidas que visem a protecção das suas vidas, segurança e privacidade, ou assegurar-se que tais medidas já foram tomadas;
- O MP deve tomar devidamente em atenção as opiniões e preocupações das vítimas quando os seus interesses pessoais forem afectados, e desenvolver ou promover acções que garantam a informação das vítimas acerca dos seus direitos e do andamento dos respectivos processos.”.
Para o MP, a par da investigação, a função de protecção das vítimas nos casos de violência doméstica, assume uma importância vital em virtude do resultado que é fundamento da incriminação, mas não previsto na norma incriminadora simples – leia-se a previsível ofensa grave ou morte da vítima, ainda poder ser evitado. Certamente também por esta razão se atribui prioridade à sua investigação e prevenção ( ).
Na sua esfera de actuação, cabe ainda ao magistrado do MP assumir uma insubstituível posição de interface, fazendo a ligação entre a vítima e o sistema formal de controlo ( ) ( ). Também de modo a evitar que a denúncia de factos escondidos durante meses ou anos não seja o primeiro passo de um calvário judicial em inquérito ou da via sacra processual em fase de julgamento, numa efectiva cultura de crédito da vítima, que usualmente recorre ao sistema judicial em desespero de causa, por falência de respostas adequadas nas outras instâncias. O magistrado do MP deverá ser orientado por uma ética do cuidado e da compreensão, no real apuramento da verdade material ( ).

6. REVISÃO DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

6.1. Medidas para tutela e protecção da vítima
Algumas alterações visam assegurar uma maior tutela e protecção à vítima, designadamente:
- A expressa previsão da possibilidade de qualquer testemunha ser acompanhada por advogado, que a informa quando entender necessário, dos direitos que lhe assistem, sem intervir na inquirição ( ), podendo, designadamente, informá-la que a sua resposta à questão formulada a poderá incriminar, requerendo nesse caso o estatuto de arguido;
- A possibilidade de notificação, em alternativa ao seu domicílio, no local de trabalho ou outro domicílio à escolha ( );
- O direito a ser notificada da data de libertação do arguido, preso preventivamente, quando o tribunal considerar que a libertação do arguido pode criar perigo para o ofendido ( ) ( );
- O regime das declarações para memória futura foi maximizado, de modo a evitar uma dupla vitimação, tornando-se obrigatório para vítimas menores de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, muitas vezes associadas a um quadro mais vasto de violência doméstica, física ou psíquica ( );
- A admissibilidade legal dos órgãos de polícia criminal, ou o MP, entrarem no domicílio, sem consentimento, para proceder a uma detenção e / ou uma busca sem consentimento, entre as 21 e as 7 horas, em caso de flagrante delito por crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, como sucede com a violência doméstica ( ).

6.2. Medidas para optimizar direitos dos denunciados
Algumas alterações visam optimizar os direitos dos denunciados:
- Relativamente aos pressupostos da constituição de arguido, ocorre uma autêntica mudança de paradigma, restrita aos casos em que se verifique uma fundada suspeita de ter praticado o crime ( ), pelo que não bastará uma mera denúncia, não confirmada por outras diligências de prova, para o fazer ( ). Prevê-se uma intervenção mais ponderada, que visa por cobro a um estado de coisas, em que excessos na constituição de arguido decorrentes do anterior modelo, presumia o interesse generalizado na aquisição de um estatuto processualmente mais favorável, quando assim já não era, devido ao pendor estigmatizante que o termo foi adquirindo com o tempo. Propugna-se que a fundada suspeita terá que assentar, no mínimo, nas declarações da ofendida, desde que verosímeis, coerentes e completas, relativamente aos elementos típicos do crime e às circunstâncias de tempo, lugar e modo, que permitam assegurar um contraditório suficiente, para assegurar ao arguido todas as garantias de defesa compatíveis com a fase de inquérito ( ).
- A constituição de arguido deve ser validada pelo MP, no prazo de 10 dias após a comunicação do órgão de polícia criminal, também no prazo de 10 dias ( ). Embora a lei não o esclareça expressamente, ficam dispensadas de validação as situações de constituição de arguido determinadas pelo MP à entidade policial, mediante identificação prévia da pessoa a constituir como arguida ( ).

6.3. Medidas para optimizar as garantias de defesa do arguido
Outras alterações visam optimizar as garantias de defesa do arguido, designadamente:
- O direito a ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade, incluindo sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo ( );
- O direito a ter conhecimento dos meios de prova, aquando do primeiro interrogatório judicial ( ), para aplicação de medida de coacção ( ), é atribuído, a par do direito a ser informado dos factos que lhe são imputados, os quais ficam a constar do despacho que aplicar a medida de coacção, sob pena de nulidade ( ). Nos casos de violência doméstica, quando se torne necessário ocultar esses elementos para protecção da vida, integridade física ou psíquica e liberdade da vítima ou de outros interveniente processuais, o que sucederá certamente com alguma frequência numa fase inicial ou intermédia do processo, o MP requer a ocultação desses elementos ao Juiz de Instrução ou este decide oficiosamente não os revelar. Verificando-se que a publicidade coloca gravemente em causa a investigação ou que impossibilita a descoberta da verdade, já o Juiz de Instrução não poderá decidir oficiosamente, por se tratar de matéria relativa à direcção da investigação, que se encontra na disponibilidade do MP;
- O acesso aos autos fica mais facilitado, em função do alargamento da regra da publicidade dos actos processuais ao inquérito ( ), embora sem permitir a própria assistência à realização dos actos processuais nessa fase ( ). Nos casos de violência doméstica, por se tratar de criminalidade violenta ( ) considerado o interesse da investigação, a protecção dos direitos das vítimas, de testemunhas e de eventuais menores, caberá ao MP promover ao Juiz de Instrução a sujeição do processo a segredo de justiça. Findo o prazo do inquérito de 8 meses ( ), o arguido não terá automaticamente acesso ao seu conteúdo por se tratar de criminalidade violenta, com regime especial, pelo que poderá ser prorrogada por duas vezes a manutenção do sigilo ( ). Embora, salvo situações excepcionais ( ), sendo um crime de investigação prioritária a regra será a da sua conclusão antes do prazo terminar.

6.4. Medidas de coacção
A necessidade de pôr termo à conduta maltratante implica, não raras vezes, a aplicação de uma medida de coacção necessária, adequada e proporcional à gravidade dos factos e à pena previsivelmente aplicável. Por essa razão será pouco vulgar a aplicação da prisão preventiva como primeira resposta coactiva, num caso de violência doméstica, pois usualmente a medida de afastamento será a que melhor cumpre aqueles pressupostos e as exigências cautelares do processo ( ).
A Lei nº 61/91, de 13 de Agosto, que, de entre as diversas medidas de garantia de protecção destinadas à mulher vítima de violência, prevê, no seu artigo 16º nº1, a medida de coacção de afastamento de residência. Não sendo imposta a medida de prisão preventiva, deverá ser aplicada a medida de afastamento da residência, no caso de se verificar um perigo concreto de continuação da actividade criminosa e o arguido viva em economia comum com a ofendida ( ).
Ainda assim, numa escalada da violência, muitas vezes potenciada pela intervenção do sistema formal ou informal e na impossibilidade técnica, até ao momento, de controlar a conduta do arguido com recurso a meios electrónicos de vigilância à distância, em tempo real, muitas vezes o upgrade coactivo torna-se a única medida possível.
A aplicação da medida de prisão preventiva, quando as concretas exigências cautelares endoprocessuais o imponham, foi salvaguardada na revisão, pois, apesar do aumento operado quanto ao limite máximo da pena de prisão – mais do que 5 anos, foi introduzida uma excepção para a criminalidade violenta, em que se inclui a violência doméstica, visto tratar-se de conduta que dolosamente se dirige contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e é punível com pena de prisão de máximo igual a 5 anos ( ).
Outras medidas de coacção introduzidas pela revisão, com manifesto interesse no âmbito do combate à violência doméstica, traduzem a obrigação do arguido entregar armas ( ) ou outros objectos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a prática de outro crime ( ), ou sujeitar-se, mediante prévio consentimento, a tratamento de dependência de que padeça e haja favorecido a prática do crime, em instituição adequada ( ), antecipando uma medida de intervenção activa com o agressor que, até então, apenas era possível em momento posterior, após decisão de suspensão provisória do processo, mediante a injunção correspondente.

6.5. Suspensão provisória do processo
Trata-se de um instrumento evoluído e optimizado para aplicação no âmbito da violência doméstica. Com efeito, constitui um espaço privilegiado de mediação e de justiça restaurativa, com vista à reparação e ao empowerment da vítima, sendo provavelmente o melhor programa de intervenção ressocializadora com agressores do país ( ).
Deve ser considerada uma solução global em que o magistrado do MP, empenhado e criativo, enquanto elemento de interface, age como arquitecto social da mudança, contando com a colaboração do Instituto de Reinserção Social e outros agentes sociais, para promover condições reais de resolução global do conflito, na qual são convocados a intervir, de forma consensual e activa, a vítima e o agressor.
Aliás, num clima potencialmente mais favorável para assegurar as finalidades de prevenção geral e especial, do que seria o resultado da mera multiplicação de acusações e condenações, num trabalho estatístico inglório para os magistrados, com vista a obter uma condenação em pesada multa que ainda será indirectamente a vítima a ter de suportar, vitimizando-se mais uma vez, ou úteis penas acessórias que o arguido pouca vontade tem, então, para cumprir.
Esta medida de diversão e consenso encontra-se prevista no artigo 281º do Código de Processo Penal, alterado por último e relativamente aos maus-tratos, pela Lei nº 7/2000, de 27 de Maio, com a introdução do nº 6, onde passou a prever-se um novo figurino de admissibilidade, desde que houvesse livre requerimento da vítima, fosse tida em especial consideração a sua situação e ao arguido não tivesse sido aplicada medida similar por infracção da mesma natureza.
A inovação da revisão de 2000 foi consequente com a alteração da natureza procedimental do crime de semi-pública para pública, visando conferir maior equilíbrio ao desígnio processual que ficara, a partir dessa data, subtraído à vontade da vítima. Contudo, a redacção pouco clara lançou algumas dúvidas, que se reflectiriam em descontinuidades significativas nos procedimentos judiciais de comarcas diferentes ou mesmo da mesma comarca. A questão traduzia-se em saber se estes pressupostos seriam ou não independentes dos previstos no nº1 do preceito e se a aplicação de injunções, durante o período da suspensão, seria ou não obrigatória.
Sustentava, então, Teresa Beleza que “o legislador, porventura numa atitude de compromisso entre os interesses e perspectivas divergentes, não deixou de estabelecer um regime especial que de alguma forma permite um não prosseguimento da acção penal em termos mais «generosos» do que o regime geral”, ou seja, “a especialidade processual que sucede ao peculiar regime de 1998 situa-se na regulação do instituto da suspensão provisória do processo, facilitada quando o crime em causa é o de maus-tratos conjugais” ( ).
Quem entendia o contrário, por referência à expressão naquele nº6, “sem prejuízo do nº1”, ficava com sérias dificuldades para ultrapassar, como a verificação da culpa diminuta do agente ou, por vezes, a existência de antecedentes criminais sem qualquer conexão como o crime, que impediriam a suspensão provisória do processo.
Com a presente revisão, essas dúvidas são clarificadas com a introdução de algumas inovações.
Antes de mais, o modelo da suspensão provisória lima as arestas de eventual discricionariedade na apreciação, pois verificados os pressupostos, o MP determina a suspensão, onde antes se lia pode determinar.
Relativamente ao crime de violência doméstica, não agravado pelo resultado, são indubitavelmente, agora, apenas três os requisitos da suspensão provisora do processo ( ):
-O requerimento livre e esclarecido da vítima;
-A ausência de condenação anterior, por crime da mesma natureza ;
-A ausência de aplicação anterior da suspensão provisória do processo, por crime da mesma natureza ( ).
Neste contexto, será missão primacial do MP e do Juiz de Instrução auscultar da efectiva liberdade e esclarecimento da vítima, pois que serão decisivos para a solução do processo. Provavelmente a redução dos pressupostos terá sido excessiva pois num caso de culpa grave do arguido, mal se compreende que se devolva à vítima o ónus de ter que decidir do destino do processo. Será desejável a inquirição pessoal pelo magistrado do MP, para poder aquilatar da sua efectiva situação, confirmando se não se encontra de algum modo pressionada ou com a vontade diminuída.
Finalmente, poderá levantar-se a questão de saber se esse requerimento dispensa, no caso da violência doméstica, a aplicação de injunções ao arguido, uma vez que se dispensam os restantes pressupostos – diz-se desde que se verifiquem os pressupostos da alíneas b) e c) do nº1. O instituto da suspensão provisória do processo é caracterizado justamente pela aplicação de injunções e pela função que estas realizam em termos de prevenção e reparação. Nos casos de violência doméstica, face à persistente ligação das condutas maltratantes, às dependências do álcool, do jogo, ou de substâncias estupefacientes, tem vindo a ser proposta, com elevado sucesso, injunção de sujeição do arguido a tratamento à dependência de que padece, terapia familiar ou psicológica e, por último, frequência de programas específicos de educação e prevenção da violência. Não vemos na letra da lei algo que impeça este entendimento, pois a ressalva face aos pressupostos do nº1, leia-se a ressalva face às várias alíneas do nº1, não colide com o recurso a um elemento do seu proémio e ao nº2 – justamente a aplicação de injunções ( ).

6.6. Detenção em flagrante e fora de flagrante delito
Com a revisão introduziram-se novos pressupostos para a detenção, em flagrante e fora de flagrante delito, reduzindo o seu âmbito normativo de aplicação ( ):
- A detenção fora de flagrante delito só pode ser, agora, efectuada quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado ( );
- A detenção em flagrante delito, quanto aos crimes que devam ser julgados em processo sumário, só pode ser mantida, quando a apresentação do arguido ao juiz não tiver lugar em acto seguido à detenção, se houver razões para crer que não se apresentará espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe for fixado ( ).
6.6.1. Primeira reflexão crítica. O crime de violência doméstica, sendo um crime punível com a pena de prisão máxima não superior a 5 anos, deve ser agora julgado em processo sumário, nos termos do artigo 381º nº1, do Código de Processo Penal. Sucede que esta criminalidade, pela necessidade da prova testemunhal ou outra, da reiteração que em princípio terá existido, recolha de documentação clínica, realização de exames e perícias, não se adequa minimamente ao julgamento em processo sumário. O processo passará para a tramitação sob a forma comum, mas, entretanto, intervenientes e polícias deslocam-se ao tribunal, onde nada acontece, a não ser, talvez, mais algum descrédito no funcionamento das instituições judiciárias. Deveria ter sido atribuída ao MP a faculdade de dar orientações, a priori, aos órgãos de polícia criminal, quanto aos crimes que, por não terem aptidão para serem julgados nos prazos curtos do processo sumário, seguiriam logo a forma comum.
Segunda reflexão crítica. Num caso de flagrante delito, fora do horário de funcionamento do tribunal, a detenção do agressor só pode ser mantida, se houver risco de que não se apresentará espontaneamente perante a autoridade judiciária. Ora, nas situações de violência doméstica, esse perigo que é mimético do perigo de fuga não existirá por regra. Então e o perigo de continuação (exacerbamento) da actividade criminosa, logo após a polícia abandonar o local, como pode ser desvalorizado? O perigo de perturbação da aquisição de prova mediante pressão imediata sobre as testemunhas, como pode não relevar? Tratam-se, claramente, de exigências cautelares do processo, mas, aparentemente, o único valor considerado pela revisão, a par da protecção quase incondicional da liberdade do agressor ( ), foi o valor do normal prosseguimento da marcha do processo.
Terceira e última reflexão crítica. Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente. Mas as situações de aplicação de medida de coacção são urgentes e não se compadecem com notificações ( ), no crime de violência doméstica, ou, por exemplo, num crime de abuso sexual de crianças no círculo familiar, em que também será raro existir algum perigo de não comparência voluntária. Pelo contrário, a notificação tem o dom, descrito à exaustão na literatura de referência em variados estudos empíricos, de despoletar um agravamento da conduta delituosa e potenciar comportamentos de extrema agressividade na tentativa de controlo sobre a vítima e testemunhas.
6.6.2. Mesmo sendo fortes os indícios, concretos os perigos e a prisão preventiva admissível, urgente o afastamento da vítima com perigo na demora para a vida daquela, nem o MP nem o Juiz de Instrução podem ordenar a detenção do indiciado para o interrogar e lhe aplicar a medida de coacção adequada. Haverá, assim, prevenção, geral e especial, que resista? Controlo da continuação criminosa ou da reincidência do agressor ? Protecção de vítimas e testemunhas ( ) ?
A resposta a estas questões, podendo ser ou parecer ser constitucionalmente complexa, merece um tratamento mais desenvolvido, que lhe dispensa nas Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal do Centro de Estudos Judiciários, para que se remete. Ainda assim, quanto à violência doméstica que agora nos ocupa, a gravidade das consequências das alterações reclamam mais algumas considerações, sobre o âmbito e os limites constitucionais da detenção.
6.6.3. Existem “determinados factores ou circunstâncias que, globalmente considerados e atendendo ao caso concreto, podem fazer crer racionalmente” ( ), que a se a detenção não tem lugar ou não é mantida o imputado vai tentar subtrair-se à acção da justiça.
Mas o perigo de não comparência deve ser aferido em concreto, não podendo ser imputado, em abstracto, a determinado factor por mais impressivo que ele se revele ( ). Por exemplo, não bastará o facto de se tratar de um suspeito estrangeiro, ou a extrema a gravidade do crime, traduzida na medida da pena aplicável, por exemplo num caso de homicídio.
A par da gravidade do crime, traduzida na sua moldura penal elevada, outros índices de perigo de fuga ou não apresentação voluntária, a concretizar, serão: A tentativa concreta de fuga após os factos; declarações de rebeldia à ordem de detenção; ausência de residência conhecida; desinserção social; ausência de emprego; ausência de ligações familiares estáveis; antecedentes criminais que denotem insensibilidade recorrente aos valores sociais; antecedentes de não comparência ou mandados de detenção ( ).
Seguindo o entendimento de Claus Roxin, deverá ter-se ainda em consideração a importância, na valoração do risco de não comparecimento voluntário, do conhecimento, pelo suspeito, da existência de um processo e de provas incriminatórias contra si ( ).
6.6.4. A detenção, enquanto privação da liberdade instrumental e precária, não visa a mera apresentação a um juiz ( ), como parece depreender-se deste novo pressuposto, quando exige para a detenção a previsibilidade de que não se apresentará. Pelo contrário, a detenção visa a apresentação a um juiz, com vista à aplicação de uma medida de coacção ( ), que na maioria dos casos tem de ser aplicada com urgência e sem demora, sendo a detenção imediata ou prévia ao conhecimento dessa possibilidade do indiciado o único efectivo garante da sua eficácia cautelar e instrumental à medida de coacção.
Retomaremos este ponto logo após uma breve introdução às normas constitucionais aplicáveis.
O direito à liberdade, consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição da República, não constitui um direito amplo à liberdade. A nossa Constituição estabeleceu, nesta matéria, o princípio da tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade, a acrescentar às reservas de lei e de decisão judicial. Todas as leis respeitantes à liberdade física dos cidadãos têm que caber numa das normas restritivas expressamente balizadas no nº 2 e nº 3, daquele preceito, o que sucede com a detenção em flagrante (alínea a) do nº3), e fora de flagrante delito (alínea b) do nº3). Esta tipicidade não inutiliza a força normativa do artigo 18º, nº 2 e nº 3, da Constituição da República, o princípio da proporcionalidade das medidas legais restritivas da liberdade. Ou seja, não basta que a lei passe pelo crivo do artigo 27º da Constituição da República, é ainda necessário que essa restrição à liberdade vise salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, que seja apta para prosseguir esse objectivo e se limite à medida necessária para o alcançar.
Daqui resulta, necessariamente, a instrumentalidade da detenção, enquanto privação precária da liberdade. Aliás, a instrumentalidade foi utilizada pelo Tribunal Constitucional como argumento para admitir a conformidade do artigo 250º, nº 3, do Código de Processo Penal, com o artigo 27º Constituição da República, em sede fiscalização preventiva da constitucionalidade do Código de Processo Penal.
Mas os limites e alcance da instrumentalidade da detenção são, fundamentalmente, ostensivos no art. 28º nº1, da Constituição da República. Aqui prevê-se como finalidade da detenção a apresentação judicial, em 48 horas, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada. É este o programa constitucional: Apresentar o detido a um juiz com vista à decisão sobre a eventual aplicação de medida de coacção.
6.6.5. Na falta das actas do trabalho da Unidade de Missão, crê-se que se poderá buscar o elemento histórico de interpretação, o ADN deste segmento da revisão, no estudo de Germano Marques da Silva, pouco anos antes da revisão, no qual denomina errónea a interpretação “relativa à necessidade de prévia detenção para apresentação ao juiz em ordem à eventual aplicação de prisão preventiva ou de outra medida de coacção”, muito comum na prática judiciária. “Nada impede que o MP promova a aplicação da prisão preventiva sem prévia detenção do arguido. Perante a promoção, o juiz ou ordena a detenção se a julgar necessária, ou notifica o arguido para interrogatório. Para respeitar o espírito da Constituição e da Lei, a privação da liberdade (que é a excepção e não a regra), mediante a detenção ordenada pelo MP ou pelo juiz, só se justifica em situação que é de urgência ou perigo na demora” ( ).
Concorda-se, em absoluto, com esta posição ( ).
Contudo, na presente revisão ela não vingou, integralmente, e somos confrontados com graves descontinuidades entre a impossibilidade de detenção e a admissibilidade de prisão preventiva, que em nada relevam as sobreditas situações de urgência ou perigo na demora, a que temos vindo a fazer referência. Na análise que fazemos ao ADN da nova detenção, terá havido algures no processo, alguma mutação genética ( ).

6.6.6. Regressemos ao nosso caso hipotético de admissibilidade da prisão preventiva. Em face dos indícios fortes, da moldura penal e de um ou mais perigos de continuação da actividade criminosa ou perturbação do inquérito com perigo para a aquisição da prova, a sua aplicação pelo juiz de instrução deve ser sempre precedida da audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade ( ). Porém, nenhum meio instrumental é previsto para apresentar o suspeito de imediato ao juiz, nos casos em que a notificação e a demora podem, justamente, permitir a concretização de algum daqueles perigos que se querem evitar.
Na ponderação entre a constelação de direitos, liberdades e garantias, atinentes à liberdade e à segurança, constata-se que os primeiros prevaleceram de modo excessivo. Mas prevaleceram também sobre as dimensões axiológico-normativas do direito à vida, à integridade pessoal e à liberdade de vítimas e terceiros.
Dizemos com Roxin que “direito processual penal é o sismógrafo da Constituição do Estado”, ou agora mais em voga que o processo penal é o direito dos inocentes. Mas convém não esquecer que a par do arguido, “presumível inocente”, também a vítima, as testemunhas e a restante comunidade não serão menos “inocentes” na narrativa processual.
É que desde a entrada em vigor da revisão, assistimos a forte actividade no sismógrafo das garantias. O primeiro sismo ocorreu quando indivíduos fortemente indiciados pela prática de crimes de homicídio não foram detidos, por se entregaram voluntariamente às autoridades, mas as réplicas sucedem-se, em novos casos da vida, em especial nas situações de violência doméstica que ficaram, neste aspecto decisivo, mais desamparadas.
6.6.7. A perigosa subalternização do periculum libertatis, olvida que num Estado de Direito fundado na igual dignidade e liberdade de todos, a liberdade juridicamente reconhecida a cada um é, no momento originário da sua consagração constitucional, uma liberdade já intrinsecamente limitada ou comprimida pela necessidade da sua compatibilização ou convivência com outros valores.
Apenas numa matriz de equilíbrio entre as garantias de defesa, os direitos da vítima e a eficácia da investigação, pela supremacia da norma jurídica violada, se poderá aspirar a realizar o Direito e a justiça penal. Por esta razão, logo após a revisão, o Conselho Superior do MP debateu este problema, com vista a ser proposta uma correcção legislativa, que tarda em chegar ( ).

CONCLUSÃO

Numa apreciação global da presente revisão penal, convocamos como primeira questão saber se os seus propósitos, tal como configurados nas respectivas exposições de motivos e vertidos em letra de lei, satisfazem as necessidades de actualização do ordenamento jurídico-penal, substantivo e adjectivo, densificado na necessária medida de congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional a que se referem e à luz das políticas internacionais relevantes.
A resposta, em nosso entender, deve ser negativa, nas duas frentes analisadas ( ). Primo, pelo ruidoso silêncio quanto a uma intervenção diferenciada de discriminação positiva no processo de eliminação da violência sobre as mulheres ( ), mediante a introdução de “uma verdadeira política criminal do género” ( ). Secundo, pela oportunidade perdida na articulação do ordenamento jurídico-penal com o civil, de família, menores, trabalho e aproximação coordenada entre as respectivas instituições judiciárias e as demais políticas públicas de apoio social, trabalho, saúde, educação e cultura.
Sem olvidar que caberá sempre ao sistema penal assumir as suas enormes responsabilidades de prevenção, repressão e reinserção do agressor, empowerment e protecção da vítima, a solução integrada para esta realidade, social e criminal, não deve permanecer entregue ao voluntarismo ou à maior ou menor sensibilidade de cada um.
Acresce que a articulação do sistema de justiça com outras instituições, inclusivamente não governamentais, pode ser e tem sido decisiva na sustação das práticas delituosas concretas, por via da acção sobre algumas das causas da violência ( ).
O apoio psicológico, social, financeiro e inserção profissional da vítima e agressor, que ao tribunal ou às entidades policiais não cabem assegurar ( ), são também essenciais para prosseguir a estabilidade familiar, económica, profissional, afectiva e educacional dos próprios menores envolvidos, evitando uma institucionalização por todos indesejada ( ).
Em suma, aguarda-se um plano estratégico assumido pelo Estado, com a cooperação dos seus funcionários e dos magistrados, das autarquias e da sociedade civil, através das comunidades locais, das instituições de solidariedade social e das organizações não-governamentais de utilidade pública; no sentido de, por um lado, garantir a segurança das vítimas da violência e, por outro, reforçar os mecanismos de controlo dos agressores. Um plano de cooperação estratégica que promova as sinergias e parcerias entre os sistemas formais e informais, assegurando a coordenação funcional dos diferentes tipos de resposta, destinados a optimizar o apoio, a protecção e a segurança das vítimas e a reforçar os mecanismos de controlo da reincidência dos agressores.
Não obstante e retomando a intervenção estritamente à área penal, a presente revisão do ordenamento jurídico-penal, substantivo e adjectivo, materializa uma concepção mais actualizada e alargada de incriminação da violência doméstica, mais conforme com a realidade sociológica subjacente, facultando ao aplicador um redobrado acervo de recursos, mais adequados a uma intervenção mais eficaz e ponderada, nomeadamente na perspectiva da tutela das vítimas e da reinserção de agressores. Sendo que, pese embora se lamentar a oportunidade perdida, os mencionados aspectos omissos na reforma poderão ser facilmente colmatados no âmbito de uma futura política multisectorial específica.
Neste contexto, a revisão, sendo insuficiente, até poderia ser considerada globalmente positiva. Não fora padecer de um flagrante desequilíbrio, diagnosticado ao nível do doseamento dos pressupostos da detenção. Uma certa concepção ultra-garantística da liberdade individual dos suspeitos de crimes, amarrou a revisão muito longe da pretendida conciliação de valores, com o pêndulo a tombar, sibilante, para fora do alcance das vítimas ( ).
Num edifício cultural e social crescentemente menos indiferente e tolerante, mas em que não raros episódios de violência oculta apenas se mostram com a morte, abre-se agora uma importante brecha, ao arrepio das recomendações internacionais.
É que para além dos riscos e dos perigos, que são muitos, a força simbólica da detenção de um agressor, rectius, da sua libertação, é uma entorse isolada na revisão – bem intencionada e globalmente positiva – que naturaliza, na representação social generalizada, um gigantesco passo atrás na protecção das vítimas de violência.
Mais do que o jurídico da questão, releva a questão da humanidade (ou falta dela), num combate que renasce diariamente, movido pela força anímica dos seus e das suas sobreviventes, que ousam resistir.
Encontradas as razões, resta perguntar se haverá espaço político para as ouvir ( ).
Será bem vinda a resposta afirmativa, que só o tempo poderá dar.
Não seja o tempo, tempo demais.


/ Plácido Conde Fernandes /

Procurador-Adjunto e Docente no Centro de Estudos Judiciários
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23.10.08

Prova Digital

Lei nº32/2008, de 17 de Julho (conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas)

Acórdão de 16 de Julho de 2008 do Tribunal da Relação de Lisboa (é proibida a junção a processo de inquérito de fotografias obtidas sem o consentimento do arguido, a partir de um cartão digital contido em máquina fotográfica ao mesmo apreendida, sem que o MºPº ou o OPC tenham solicitado ao JIC prévia autorização para revelar ou juntar as mencionadas fotografias)

Acórdão de 15 deJulho de 2008 do Tribunal da Relação de Lisboa (as mensagens que, depois de recebidas, ficam gravadas no telemóvel receptor deixam de ter a natureza de comunicação em transmissão; são comunicações recebidas, pelo que deverão ter o mesmo tratamento da correspondência escrita já recebida e guardada pelo destinatário tal como acontece na correspondência efectuada pelo correio tradicional; diferenciar-se-á a mensagem já recebida mas ainda não aberta da mensagem já recebida e aberta; as mensagens escritas - SMS - que o arguido remeteu ao queixoso via telemóvel, cujo conteúdo foi copiado pela PJ e junto aos autos, constituem um meio de prova lícito e não configuram, de forma alguma, um caso de intromissão na vida privada do mesmo)

Acórdão de 22 de Fevereiro de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (fornecimento de dados de tráfego na Internet por operador de comunicações)

Acórdão de 6 de Dezembro de 2006 do Tribunal da Relação de Lisboa (a informação sobre se determinado e identificado telemóvel está a ser utilizado e qual o número do cartão que lhe está associado integra-se no conceito de dados de base. 2. Consequentemente, tal informação não está sujeita ao regime legal previsto nos artigos 187º a 190º do C. P. Penal)

Sigilos profissionais

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de Junho de 2009 (numa perspectiva de ponderação dos interesses conflituantes, entre, por um lado, a reserva da vida privada e preservação da confiança na actividade bancária e, por outro, o interesse comunitário na investigação de crimes com relevo, inteiramente dependente da obtenção dos elementos cobertos por segredo bancário, existe clara prevalência deste último interesse sempre que não exista forma de obter o elemento necessário por via não intrusiva do sigilo bancário)

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Abril de 2009 (na ponderação dos dois interesses — a defesa do sigilo profissional e a descoberta da verdade material com a consequente realização da justiça, este ultimo prevalece sobre o primeiro)

Acordão nº 2/2008 do STJ - fixação de jurisprudência (no âmbito de inquérito, se for requisitada a instituição bancária informação referente a conta, a instituição só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário; sendo ilegítima a escusa (…) o próprio tribunal em que a escusa for invocada (…) ordena a prestação da informação, nos termos do nº 2 do Artigo 135º do Código de Processo Penal; caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 do mesmo artigo)

Acórdão nº 42/2007 do Tribunal Constitucional ( não julga inconstitucional a norma do Artigo 2º, nº 2, da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, na medida em que permite ao Ministério Público, na fase de inquérito, determinar o levantamento de sigilo bancário)

Acórdão de 2 de Maio de 2007 do Tribunal da Relação de Coimbra (face à invocação do sigilo bancário, o juiz ou considera tal recusa ilegítima e então ordena o depoimento sobre o que lhe é perguntado, ou a considera legítima (com cobertura legal) e então impõe-se a imediata abertura do incidente perante o tribunal superior)

Acórdão de 12 de Abril de 2007 do STJ (quando é invocado o direito de escusa por um estabelecimento bancário, a autoridade judiciária (i) aceita como legítima a escusa ou (ii) entende que a escusa é ilegítima e então ordena, após as necessárias averiguações, que o respondente deponha sobre o que lhe é perguntado, ou (iii) suscita ao tribunal superior que ordene a prestação de depoimento, se tiver que se quebrado o segredo profissional)

Acórdão de 8 de Março de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (a quebra de sigilo bancário, se este for invocado legitimamente, só pode ser concretizado mediante o recurso ao respectivo incidente de quebra de sigilo, regulado no art.º 135.º, do C.P.P.)

Acórdão de 28 de Março de 2007 do Tribunal da Relação do Porto (se a entidade bancária, escudando-se no dever de sigilo, recusa fornecer informações atinentes a uma conta, como o nome do seu titular e o registo de movimentos, não tem cabimento o incidente de quebra de sigilo bancário, tendo o tribunal de 1ª instância competência para ordenar a apreensão de documentos que contenham essas informações)

Acórdão de 21 de Março de 2007 do Tribunal da Relação do Porto (se, durante o inquérito, o Ministério Público solicita a um Banco determinada informação e esta é legitimamente recusada, com fundamento no sigilo bancário, não pode ser ordenada uma busca para apreensão dos documentos que contém aquela informação, havendo antes que seguir a via da dispensa do dever de sigilo, nos termos do artº 135º, nº 3. do CPP98.)

Acórdão de 8 de Fevereiro de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (quando um banco recusa prestar informações em inquérito, por estarem protegidas por segredo bancário, tem que ser suscitada a intervenção de tribunal superior)

Acórdão do Tribunal Constitucional nº 294/2008 (não julga inconstitucional a norma do nº 1 do Artigo 181º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de poder ser mantida a apreensão de depósitos bancários, ainda que não tenha sido proferida acusação no prazo estabelecido no artigo 276º do mesmo diploma)

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Setembro de 2008 (sendo indicado como testemunha um advogado dos denunciantes, para que deponha em julgamento terá que ser decidida a quebra de segredo profissional - Artigo 135º, nº 1 do CPP; antes, o tribunal onde ocorre a escusa do depoimento deve solicitar à Ordem dos Advogados um parecer, que não é vinculativo, sendo apenas mais um elemento a considerar na decisão que vier a ser tomada - Artigo 135º, nº 4 do CPP)

Fase de inquérito

F. TEODÓSIO JACINTO, “O modelo de processo penal entre o inquisitório e o acusatório: repensar a intervenção judicial na comprovação de arquivamento”, REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO nº 118

JOSÉ P. RIBEIRO DE ALBUQUERQUE, “A gestão do inquérito – instrumentos de consenso e celeridade”, disponível aqui.

JOÃO CONDE CORREIA, “Inquérito: a manutenção do paradigma ou uma reforma encoberta?”, REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA CRIMINAL, ano 18, nºs 2 e 3

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Janeiro de 2009 (a reabertura do inquérito nos termos do Artigo 279º, nº 1 do CPP é admissível se surgirem novos elementos de prova; assim acontece, mesmo que tenha havido requerimento de instrução, na qual veio a ser proferido despacho de arquivamento; é da competência do MP decidir se se verificam os pressupostos para a reabertura do inquérito e deferir ou indeferir o referido requerimento)

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Dezembro de 2008 (o Ministério Público não deve abrir inquérito quando o comportamento denunciado não integra a prática de qualquer infracção criminal; se o fez, a não realização nele de qualquer diligência não constitui nulidade, sanável ou insanável. Na fase de inquérito, o único acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido, se se verificarem as circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 272.º do Código de Processo Penal, ou seja, se o inquérito correr contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de crime e desde que seja possível notificá-la. Num inquérito que não corra contra nenhuma pessoa determinada, não é obrigatório realizar qualquer interrogatório, razão pela qual não pode existir nulidade do inquérito, por insuficiência do mesmo)

Acórdão de 24 de Outubro de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (no inquérito, compete em exclusivo ao Ministério Público a escolha das diligências que devem ser efectuadas com vista à realização da sua finalidade; portanto, a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito por insuficiência)

Acórdão de 2 de Maio de 2007 do Tribunal da Relação do Porto (se o Ministério Público descreveu factos na acusação, que integram uma infracção penal, mas não os qualificou como tal, não lhes dando qualquer relevância em sede de qualificação jurídica, não pode haver condenação pela infracção que esses factos preenchem, por se estar perante a nulidade de falta de promoção prevista na alínea b) do Artigo 119º do Código de Processo Penal, que deve ser declarado em qualquer fase do procedimento)

Acórdão de 29 de Março de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (a omissão de diligências não impostas por lei não determina a nulidade do inquérito pois a apreciação da necessidade dos actos de inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público que detém a titularidade do inquérito, bem como a sua direcção, sendo este livre de promover as diligências que entender necessárias, ou convenientes, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar)

Acórdão de 4 de Janeiro de 2007 do Tribunal da Relação de Lisboa (só a omissão de diligências essenciais para a descoberta da verdade pode constituir nulidade, maxime quando se omitam a prática de actos que a lei prescreva como obrigatórios; o facto de o Ministério Público ter omitido a realização de diligências, que no entender do assistente eram necessárias para a investigação da verdade, não consubstancia aquela nulidade; se o assistente entendia ainda serem necessárias certas diligências, a encetar durante o inquérito, deveria lançar mão do instituto da 'intervenção hierárquica ', previsto no artº 278º CPP)

MEDIDAS DE COACÇÃO

JORGE GONÇALVES, “A revisão do Código de Processo Penal: breves nótulas sobre o 1º interrogatório judicial de arguido detido e o procedimento de aplicação de medidas de coacção”, in Revista do CEJ, nº 9, 2º semestre 2008 - NÚMERO ESPECIAL (textos das Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal)

NUNO BRANDÃO, “Medidas de Coacção: o procedimento de aplicação na revisão do Código de Processo Penal”, in Revista do CEJ, nº 9, 2º semestre 2008 - NÚMERO ESPECIAL (textos das Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal)

VITOR SEQUINHO DOS SANTOS, “Medidas de Coacção”, in Revista do CEJ, nº 9, 2º semestre 2008 - NÚMERO ESPECIAL (textos das Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal)

NUNO BRANDÃO, “Medidas de coacção: o procedimento de aplicação na revisão do Código de Processo Penal” REVISTA PORTUGUESA DE CIÊNCIA CRIMINAL, Ano 18, nº1, Janeiro/Março 2008

NUNO BRANDÃO, “Liberdade condicional e prisão (subsidiária) de curta duração Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30 de Outubro de 2007”

Acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2008 (não é inconstitucional o entendimento da norma constante da alínea a) do nº 1 do Artigo 215º do Código de Processo Penal, segundo o qual o prazo máximo da prisão preventiva, na fase de inquérito, afere-se em função da data da prolação da acusação e não da data da notificação da mesma)

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Outubro de 2008 (o facto de o arguido se encontrar na situação de prisão preventiva à ordem de um processo não impede que lhe seja aplicada essa medida de coacção num outro processo)

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de Fevereiro de 2009 (o termo de identidade e residência tem a natureza de verdadeira medida de coacção e, por isso, é-lhe aplicável o disposto no Artigo 214º do CPP - concretamente a alínea e) do seu nº 1; assim, as obrigações emergentes do TIR extinguem-se com o trânsito em julgado da sentença condenatória)

Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 24 de Novembro de 2008 (sendo, em acto seguido ao primeiro interrogatório judicial, aplicada ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, sem que dessa decisão seja interposto recurso, não pode merecer deferimento um requerimento apresentado alguns dias depois, a pedir a substituição daquela medida, fundando-se a pretensão apenas na discordância com a medida de coacção de prisão preventiva, ou seja, sem que seja invocado qualquer facto novo. Estando as medidas de coacção sujeitas à condição rebus sic stantibus, a substituição de uma medida de coacção por outra menos grave apenas se justifica quando se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação)

Decisão Sumária de 30 de Junho de 2008 doTribunal da Relação de Lisboa (com o trânsito em julgado da sentença condenatória, o termo de identidade e residência prestado nos autos extingue-se; deste modo, transitada em julgada a sentença condenatória, já não é legalmente admissível ulterior notificação do arguido, por via postal simples, para a morada constante do TIR)

Acórdão de 18 de Junho de 2008 doTribunal da Relação de Lisboa (o termo de identidade e residência tem a natureza de verdadeira medida de coacção apesar de lhe não serem aplicáveis os princípios da legalidade, necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade, já que constituem uma verdadeira e séria limitação da liberdade; assim sendo, a extinção do TIR ocorre, como acontece relativamente às demais medidas de coacção, com o trânsito em julgado da sentença condenatória – Artigo 214º, nº 1, alínea e) do CPP)

Acórdão de 28 de Junho de 2007 doTribunal da Relação de Lisboa (a presunção de inocência não impede a manutenção da medida cautelar de prisão preventiva, quando imposta dentro do quadro legal consentido; por outro lado, não havendo novos factos ou alteração dos pressupostos que fundamentaram a aplicação daquela medida de coacção, sujeita à regra rebus sic standibus, deve ela ser mantida)